O Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda diante dos impactos da Covid-19
O governo federal, depois de muita pressão da sociedade civil organizada, encaminhou ao Congresso Nacional, com data de 1º de abril de 2020, a Medida Provisória nº 936, com o objetivo declarado de manter empregos e a remuneração dos trabalhadores, atingidos pelo impacto da epidemia de coronavírus sobre as atividades econômicas. A MP autoriza a redução temporária da jornada de trabalho e dos salários, na mesma proporção, bem como da suspensão dos contratos de trabalho, oferecendo aos trabalhadores um benefício que cobriria parte da perda de rendimentos durante esse período. As regras desse novo programa são apresentadas e comentadas nesta Nota Técnica, visando contribuir para o debate.
Essa MP 936 se soma a um conjunto mais amplo de iniciativas tomadas pelo governo e o Congresso, em relação aos desafios colocados pela epidemia para a saúde pública, mas também sobre seus impactos sociais e econômicos. Nesse sentido, vale lembrar que, em 22 de março, o governo Bolsonaro havia editado a Medida Provisória nº 927 que, entre seus dispositivos, autorizava a suspensão do contrato de trabalho por até 4 meses, sem garantia de renda e de emprego. Diante da forte reação das Centrais Sindicais, partidos e movimento sociais, o governo recuou e, no dia seguinte, revogou esse dispositivo da MP 927.
Por outro lado, o Congresso Nacional aprovou, em 30 de março, o Projeto de Lei 1.066/2020, instituindo a Renda Básica de Emergência, que prevê um benefício de R$ 600,00 mensais a trabalhadores informais e pessoas inscritas no Cadastro Único dos Programas Sociais do Governo Federal. Esse projeto de lei foi sancionado pelo presidente da República em 1º de abril, mas, até o fechamento desta Nota Técnica, ainda não tinha sido publicado no Diário Oficial da União.
Redução da jornada e do salário e o benefício emergencial
Pela MP 936, a redução da jornada de trabalho e, proporcionalmente, do salário fica autorizada, mediante acordo individual escrito ou negociação coletiva e com duração máxima de 90 dias. A redução poderá ser, a princípio, de 25%, 50% ou 70% do salário do/a trabalhador/a. Em compensação, o/a trabalhador/a receberá, de forma complementar, o Benefício Emergencial de Preservação do Emprego e da Renda será calculado aplicando-se o percentual de redução do salário ao que o/a trabalhador/a teria direito se requeresse o seguro desemprego. Ou seja, se o trabalhador tiver a jornada e salário reduzidos em 50%, seu benefício será de 50% do valor do seguro desemprego ao qual teria direito, se tivesse sido dispensado.
O percentual de redução de jornada e salário poderá ser diferente dos mencionados acima, em caso de negociação coletiva, mas o benefício será limitado a essas frações pré-determinadas. Assim, se a redução ficar entre 25% e 50%, o percentual do benefício fica em 25% do seguro-desemprego; para redução de salário de 50% a 70%, o benefício será de 50%; e se a redução for maior do que 70%, o benefício se limitará a esse percentual. Porém, reduções salariais inferiores a 25% não darão direito ao complemento estabelecido na MP.
A jornada e o salário voltam ao normal com a cessação do estado de calamidade, do prazo pactuado ou caso o empregador decida antecipar seu encerramento.
A suspensão do contrato de trabalho e o benefício emergencial
A MP também autoriza que empresas, mediante acordo individual ou negociação coletiva, suspendam o contrato de trabalho por até dois meses ou por dois períodos de 30 dias cada. Essa alternativa, na prática, se configura como uma redução de 100% da jornada e do salário.
Nesse caso, o trabalhador fará jus ao recebimento de benefício mensal, cujo valor dependerá do tamanho da empresa. Para empresas com receita bruta anual de até R$ 4,8 milhões –
o que corresponde ao limite máximo de enquadramento do Simples Nacional – o benefício emergencial de preservação do emprego e da renda será equivalente a 100% do valor do seguro-desemprego ao qual o trabalhador teria direito. Para empresas com receita bruta anual superior a esse valor, a empresa terá que pagar 30% do salário do empregado, que receberá também o benefício emergencial na proporção de 70% do valor do seguro-desemprego a que teria direito. Vale alertar que a parcela da empresa, nessa última hipótese, tem como base de cálculo o salário do empregado. Qualquer que seja o tamanho da empresa, na hipótese de suspensão do contrato, devem ser mantidos os benefícios, tais como planos de saúde, vale refeição etc.
Durante a suspensão do contrato, não poderá haver prestação de trabalho remoto ou de qualquer forma. Se isto ocorrer, além das penalidades aplicáveis, o empregador terá de pagar o salário integral correspondente.
Regras comuns e outros dispositivos
Apenas os trabalhadores abrangidos pela redução da jornada ou pela suspensão do contrato passam a gozar de uma garantia de emprego pelo dobro do tempo que durar essas medidas. Entretanto, no texto da MP, essa garantia é relativizada, pois ela não proíbe demissões mesmo daqueles diretamente afetados. O empregador poderá dispensar sem justa causa um empregado nesse programa, mediante o pagamento de somente uma parte do salário (50%, 75% ou 100%, dependendo da redução acordada) que ele receberia até o final do prazo da garantia.
A garantia de emprego só é válida para os trabalhadores diretamente afetados pela redução da jornada ou pela suspensão do contrato de trabalho. Demais trabalhadores da empresa podem ser dispensados. A inclusão dos trabalhadores nessas medidas não os priva de requerer o seguro-desemprego, caso posteriormente venham a ser dispensados, ou seja, não afeta os prazos e carências exigidos para a concessão do seguro.
Não pode participar do programa o trabalhador que eventualmente receba benefício de prestação continuada do Regime Geral de Previdência Social ou dos Regimes Próprios de Previdência Social, ou que esteja em gozo do seguro-desemprego ou da bolsa-qualificação. Entretanto, pensionistas e quem recebe auxílio-acidente estão habilitados a participar. A MP também exclui trabalhadores que detenham cargos públicos, não se aplicando a empregados da administração pública direta ou indireta, de empresas estatais de sociedade de economia mista e suas subsidiárias. A MP permite que um trabalhador receba mais do que um benefício emergencial, se mantiver, por exemplo, mais do que um vínculo de emprego sujeito à redução de jornada ou suspensão temporária. Porém, um de seus artigos limita o valor de cada benefício a R$ 600,00.
Trabalhadores com contrato de trabalho intermitente poderão receber R$ 600,00 mensais a título de benefício emergencial. Valor pago pelo empregador a título de ajuda compensatória mensal, não terá natureza salarial, não integrará a base de cálculo do imposto de renda na fonte ou da declaração de ajuste da pessoa física. Para o empregador, esses valores não terão
incidência de contribuição previdenciária e demais tributos incidentes sobre a folha de salários, podendo também ser deduzidos do lucro líquido para fins de apuração dos impostos e contribuições sobre o lucro. Também não serão base para recolhimento de contribuição para o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço – FGTS.
Negociação coletiva
Apesar do preceito constitucional de que a redução de salários só possa ser feita por negociação coletiva, a MP permite que a redução da jornada e a suspensão do contrato possam ser adotadas por acordo individual entre patrão e empregado. A proposta do governo reserva um pequeno espaço para que os termos de sua adesão sejam fixados por negociação coletiva. A negociação coletiva é exigida para tais alterações no contrato somente em relação a trabalhadores que tenham salário acima de R$ 3.135,00 (3 salários mínimos), excluídos os que tiverem formação universitária e recebam acima de R$ 12.202,00 (duas vezes o teto do RGPS). Assim, somente nessa faixa intermediária de salário é obrigatória a intervenção do sindicato.
Todo acordo individual firmado entre empregador e empregado terá que ser comunicado ao sindicato laboral, que poderá reagir no sentido de melhorar seus termos pela negociação coletiva. Pois, se esta for firmada, prevalecerá sobre a negociação individual. Ademais, caso tenha sido celebrado anteriormente acordo ou convenção sobre esse tema, poderá ser renegociado para adequação de seus termos à MP-936, no prazo de dez dias corridos, a contar da publicação da Medida Provisória.
Para efeito de negociação coletiva, a MP admite a convocação de assembleia, deliberação, decisão, formalização e publicidade de convenção ou de acordo coletivo de trabalho por meios eletrônicos e prazos reduzidos pela metade.
Alcance e taxa de reposição
Não é objetivo desta nota apresentar estimativa precisa do potencial alcance e efeitos das medidas propostas pelo governo. Porém, nesta primeira avaliação, pode-se indicar alguns parâmetros nesse sentido. Um importante indicador é a taxa de reposição, ou seja, o percentual do rendimento mensal do trabalhador, que é assegurado pelo programa. Ele permite, entre outras coisas, comparações com programas similares de outros países.
Na Tabela 1, apresenta-se o cálculo da taxa de reposição (relação entre o salário reduzido mais benefício pago e o salário integral), para os três percentuais de redução de jornada e salário previstos na MP. Pode-se perceber que, apenas para os que recebem um salário mínimo, a taxa de reposição é completa. O trabalhador que recebe R$ 1.500,00 mensais terá perdas, que variam entre 5%, 10% e 14%, a depender do percentual de redução do salário (25%, 50% ou70%, respectivamente). Como regra geral, para salários mais baixos, a taxa de reposição aproxima-se de 100% (quase a reposição total). A perda de rendimentos se acentua, a partir do ponto em que o salário supera os R$ 2.666,00, pois o valor do benefício passa a ser constante.
Na Tabela 2, apresenta-se o cálculo da taxa de reposição, como proporção do salário nominal, para o caso de suspensão do contrato de trabalho, conforme o tamanho (faturamento) da empresa. O que se percebe, além da acentuada queda na taxa de reposição a partir do salário maior do que R$ 2.500,00, é que para trabalhadores em empresas maiores a taxa de reposição será maior. Isso se deve ao fato de que a MP prevê a ajuda obrigatória do empregador, calculada sobre o salário do empregado. Ou seja, trabalhadores em empresas menores, terão maior perda de rendimentos no caso da suspensão de contrato.
A taxa de reposição do programa no Brasil pode ser comparada com o critério adotado em países desenvolvidos. Em estudo divulgado recentemente pela Fundação Hans Boeckler, da Alemanha, de 15 países europeus, quatro pagam 100% do salário perdido. Na Suécia, varia de 92,5% a 96%, em quatro países é de 80%, em três é de 70%, em Portugal, de 66,6% e na Alemanha, de 60% ou 67%. Em contraste, no Brasil, como demonstrado acima, apenas para salários menores é que a taxa de reposição se aproxima dos patamares desses países. E aqui, esses salários mais baixos são claramente menores do que os menores salários europeus e não asseguram, em seus valores integrais, padrão de vida satisfatório.
A MP-936, como visto acima, assegura uma taxa de reposição mais elevada para os trabalhadores que recebem salários de até 2,5 ou 3 salários mínimos, aproximadamente. Segundo a Relação Anual de Informações Sociais, de 2018, a proporção de contratos de trabalho com remuneração média mensal ao longo do ano de até 3 salários mínimos representou 82,7% do total, sendo que, entre os contratos que estavam ativos no final daquele ano, a proporção era de 80,1%. Mesmo assim, cerca de 15% a 17% dos contratos tinham remuneração média entre esse patamar e o de dez salários mínimos mensais.
Outras medidas
O governo Bolsonaro também anunciou, no dia 1º de abril, a sanção com vetos ao PL 1.066/2020, que cria a Renda Básica Emergencial para trabalhadores informais e pessoas inscritas no Cadastro Único. O veto suprimiu a elevação do valor limite da renda familiar
per capita para a concessão do Benefício de Prestação Continuada, o que ampliaria a cobertura desse programa assistencial. Além disso, anunciou outras duas medidas, além do Programa Emergencial de que trata esta Nota. São elas:
1) Apoio para estados e municípios, para os Fundos de Participação dos Municípios e Fundos de Participação dos Estados (Valor estimado do desembolso: R$ 16 bilhões);
2) Crédito para a manutenção de empregos, com recursos do Tesouro nacional, para pagamento da folha de salários. Essa linha de crédito especial de financiamento de folha de pagamento estará disponível por dois meses, para pequenas e médias empresas (empresas com faturamento entre R$ 360 mil e R$ 10 milhões). Segundo o governo, existe em torno de 1,4 milhão de empresas enquadradas nessa faixa, que empregam cerca de 12,2 milhões de pessoas.
O crédito será condicionado à garantia de emprego pelo período de dois meses e os recursos serão creditados diretamente na conta corrente do trabalhador, com valor máximo de dois salários mínimos. A taxa de juros cobrada será igual à taxa Selic de 3,75% a.a. (spread zero), com seis meses de carência e pagamento em 36 parcelas.
Vale destacar, a respeito dessa medida, que ela cobre apenas dois meses de pagamento de salários, o que provavelmente estará muito aquém do necessário para a saída da situação de emergência. As micro e pequenas empresas, com faturamento inferior a R$ 360 mil anuais, não estão contempladas. Sobretudo, as incertezas futuras são grandes, o que pode desestimular os pequenos e médios empresários a tomarem o empréstimo.
Considerações finais
O movimento sindical brasileiro, capitaneado pelas Centrais Sindicais, tem demandado e pressionado por medidas de proteção social dos trabalhadores, estejam eles amparados por contratos formalizados ou não, para fazerem frente aos impactos da propagação da pandemia no território nacional. Essas demandas foram apresentadas pelas Centrais Sindicais em documento entregue ao Congresso Nacional, em 17 de março de 2020 (Medidas de proteção à vida, à saúde, ao emprego e à renda dos trabalhadores e trabalhadoras). A mobilização sindical ajudou na aprovação da Renda Básica de Emergência, que atendeu aos trabalhadores informais e famílias mais vulneráveis. No caso dos trabalhadores formalizados, apenas uma parte das demandas sindicais foram incorporadas à medida do governo, que ainda contém limites na proteção dos trabalhadores e trabalhadoras.
Antes de resumir alguns pontos críticos dessa MP, vale dizer que benefícios para mitigar a perda de renda com a redução da jornada ou a suspensão do contrato de trabalho não são novidade nas políticas ativas de mercado de trabalho no Brasil. A complementação do salário reduzido por acordo foi regulada pelo Programa de Proteção ao Emprego (PPE), criado em 2015 como medida para enfrentar a crise recessiva. E, antes disso, o Bolsa Qualificação, uma modalidade de layoff condicionada à participação em atividade de treinamento, foi instituída nos anos 90 e é uma modalidade do seguro-desemprego. Portanto, tratam-se de políticas ativas de mercado de trabalho conhecidas no país, mas que receberam neste momento uma forma específica.
Outro ponto importante, nesse sentido, é que a OIT recomenda como política ativa para proteção dos empregos e da renda, a adoção de mecanismos de retenção de empregos, citando explicitamente a redução da jornada e as licenças remuneradas. Essa recomendação se insere em um conjunto maior que abrange a proteção dos trabalhadores nos locais de trabalho, bem como o estímulo econômico e sustentação da demanda. Como demonstrado, a taxa de reposição dos salários só é integral para o salário mínimo, ficando entre 90% e 70% para salários até 3 SM. Em comparação, vários países Europeus passaram a garantir a remuneração integral ou quase integral em suas políticas de proteção ao emprego e renda. Essa proteção é mais efetiva do que no Brasil quando se considera o poder aquisitivo dos salários, a rede de serviços públicos mais estruturadas, menor peso de tarifas de energia elétrica, água e telefone e de despesas de transporte no rendimento dos trabalhadores. Por isso, cabe discutir a elevação da taxa de reposição no programa brasileiro.
Ainda em relação a este ponto, vale dizer que o percentual de redução da jornada e do salário não tem qualquer limite, podendo ser de 100%. Para efeito de comparação, no PPE havia sido imposto um máximo de 30% de redução, complementando a remuneração com metade do que o trabalhador perdia. Essa limitação tem uma dupla função, de evitar que a renda do trabalhador caia a um patamar insuportável, e de minorar o gasto público.
O Programa Emergencial também não incorpora plenamente os sindicatos na negociação coletiva dessas medidas e isso prejudicará o resultado para os trabalhadores. Este é um ponto que demanda ajuste com a Constituição. Os sindicatos têm melhores condições de buscar a ampliação da taxa de reposição salarial, do período de estabilidade e outras condições de implementação das medidas, inclusive o de fiscalizar sua aplicação pelas empresas.
Por fim, uma grande lacuna é a ausência de efetiva e generalizada garantia de emprego aos trabalhadores e trabalhadoras, independentemente de estarem incluídos no Programa. Para dar tranquilidade às famílias durante a fase de combate à pandemia, os empregos deveriam ser garantidos, proibindo-se dispensas sem justa causa. A esse respeito, também, é preciso lembrar dos trabalhadores que estão desempregados neste momento. Aqueles que já recebem o seguro-desemprego, provavelmente terão encerrado o período de benefício antes da cessação do estado de calamidade. Aqueles que sequer recebiam o seguro, ainda mais desprotegidos estão, pois podem não se enquadrar nas regras da Renda Básica Emergencial.
Assim, no debate sobre a MP 936 cabe propor melhorias na intensidade da proteção aos trabalhadores para promover efetivamente a manutenção dos empregos na crise, além de ampliar a proteção aos desempregados.