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O que aprender nos 30 anos do massacre da Praça da Paz Celestial

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Neste 4 de junho, o mundo inteiro relembrou os 30 anos da resistência do povo chinês à repressão do governo no Massacre da Paz Celestial. Em resposta aos protestos pró-democracia de 1989, liderados por estudantes, o exército deixou inúmeros mortos e desaparecidos. Até hoje, o episódio continua sendo uma das mais simbólicas imagens do século XX. Mas as notícias de 2019 destacaram os esforços de diferentes governos (incluindo o atual) para apagar essa página da história da China. O que aprender com esse caso?

 

A célebre frase de Waly Salomão cai como uma luva para descrever o que a ciência chama de “memória coletiva” – e de quebra, dá uma dica sobre a importância dos meios de comunicação nesse processo: “A memória é uma ilha de edição”.

 

Nas semanas que antecedem a data, a máquina de censura entra em ação e ativa sua ampla rede de algoritmos, além de milhares de pessoas, para apagar qualquer referência à efeméride na internet. O simples ato de compartilhar imagens nas redes sociais pode dar cadeia. Quem tentar burlar os mecanismos de controle se arrisca a pegar até três anos de prisão.

Em raro pronunciamento sobre o massacre neste domingo, o ministro da Defesa, General Wei Fenghe, mostrou que não vê problema naquele ato de violência do governo há 30 anos. Tanto tempo depois, tanta falta de avanço. Não é de hoje que o governo da China se torna referência mundial de autoritarismo e desrespeito à cidadania do próprio povo. “Este incidente foi uma turbulência política, e o governo central adotou medidas para deter as turbulências, o que é uma política correta”, disse o general.

 

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O homem na foto acima não foi baleado, tampouco atropelado, mas foi levado para um destino desconhecido até hoje. Na China, no entanto, esta cena foi “apagada” do consciente coletivo. A BBC foi às ruas perguntar aos chineses se eles conheciam essa imagem, e 80% dos entrevistados responderam que não.

 

A história que não se perdeu

Graças às fotos, documentos, depoimentos e uma série de evidências concretas, essa história não se perdeu. O dia 3 de junho amanheceu com uma demonstração de luto à morte de um líder da luta contra o autoritarismo político-militar que depois de morto foi difamado pelos seus opositores. Espontaneamente, a manifestação iniciada por grupos de estudantes se multiplicou e inúmeras pessoas encheram as ruas. Apenas em Pequim, foram 1 milhão de pessoas, 0.09% da população de toda a China na época. Exigindo que a reputação do falecido fosse reabilitada, que seu legado fosse honrado com reformas democráticas pela liberdade de imprensa, e o fim da corrupção no governo.

Na noite de 3 de junho e na manhã seguinte, a Praça da Paz Celestial foi alvo de uma ofensiva militar em larga escala, com tanques e soldados avançando e disparando em direção aos cidadãos. Alguns manifestantes contra-atacaram incendiando veículos blindados com coquetéis molotov. Até hoje, a censura e a ausência de relatórios oficiais tornam impossível saber quantas pessoas morreram naquela madrugada.

Por isso, hoje o mundo inteiro (fora o governo da China) faz questão de lembrar e de protestar, para que cenas como essa jamais sejam apagadas da história, e nunca se repitam.

 

Outro país, outras histórias de violência

Neste 1º de abril, o mundo inteiro relembrou os 55 anos da resistência do povo brasileiro à repressão do governo durante a Ditadura Civil-Militar. Em resposta aos protestos pró-democracia desde 1964, liderados por estudantes, o exército deixou inúmeros mortos e desaparecidos.

Nas semanas que antecedem a data, a máquina de censura entrou em ação e ativou sua ampla rede de robôs, além de milhares de pessoas, para reescrever qualquer referência à efeméride na internet. Dicionários online foram editados a partir de computadores do governo, e palavras críticas ao regime foram censuradas. Comunicadores de todo o país foram intimados a omitir totalmente a palavra “ditadura”. Quem tentar burlar os mecanismos de controle se arrisca a ser demitido. O simples ato de compartilhar imagens, piadas e montagens nas redes sociais pode ajudar o governo a distorcer a memória coletiva sobre o regime.

Em pronunciamentos sobre os massacres deste período, o Presidente da República, Capitão Jair Bolsonaro, mostrou que não vê problema naqueles atos de violência do governo. Tanto tempo depois, tanta falta de avanço. Não é de hoje que o governo do Brasil se torna referência mundial de autoritarismo e desrespeito à cidadania do próprio povo. “Ninguém tem prova de nada, suicídio acontece” (7 de julho de 2018, sobre o jornalista Vladmir Herzog, torturado até a morte em 1975), “O grande erro foi torturar e não matar. F#dam-se.” (8 de julho de 2018, em resposta a uma multidão clamando “tortura nunca mais”).

 

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O homem na foto acima não foi fuzilado, tampouco torturado, mas foi levado a um destino triste. “Ele correu para não ser espancado como os outros, mas caiu, bateu a cabeça no meio fio em frente ao Teatro Municipal, deu um berro horroroso e morreu ali mesmo” (conta Evandro Teixeira, que fotografou essa e outras imagens do massacre conhecido mundialmente como Sexta-Feira Sangrenta de 1968).

No Brasil de 2019, no entanto, esta cena foi “editada” na memória coletiva, quando viralizou uma montagem na qual o rosto do estudante era trocado pelo do ex-presidente Lula. Com a legenda “militares botando Lula pra correr desde 1964”, a montagem distorcia a realidade desse fato histórico.  A piada apaga o peso da morte do rapaz anônimo quando o transforma no escárnio de um político famoso, e ao mesmo tempo banaliza a violência e a perseguição praticados pelo governo.

Perguntados nas ruas se acreditavam que seria o Lula na foto, milhares de brasileiros responderam que sim.

Essa violência apagada é a violência diária que o povo sofre, jovens anônimos, rostos cortados, trabalhadores esquecidos nos bastidores da história. Assim foi também com o recente Massacre dos 80 tiros contra o carro de uma família negra no Rio de Janeiro: “o exército não matou ninguém não”, disse o Presidente. Todos os réus envolvidos foram absolvidos pelo tribunal militar.

Graças às fotos, documentos, depoimentos e uma série de evidências concretas, a verdadeira história não se perdeu.

 

Outra história que ainda não se perdeu

O dia 15 de maio de 2019 amanheceu com uma demonstração de luto aos cortes que podem acabar com as instituições líderes em pesquisa e combate à desigualdade no país: as Universidades Públicas e a Previdência Social. Na luta contra o autoritarismo político-militar, trabalhadores, educadores e estudantes críticos aos cortes foram difamados pelo governo. Espontaneamente, uma manifestação iniciada por grupos de estudantes se multiplicou e inúmeras pessoas encheram as ruas. Apenas no Rio de Janeiro, foram 250 mil pessoas, 0.13% de toda a população do Brasil. O povo exigia que a reputação do ensino público fosse reabilitada, que seu legado fosse honrado com reformas democráticas pela liberdade de ensino, pesquisa e divulgação científica, e o fim da corrupção no governo – que explicitamente oferece dinheiro público em troca de apoio para os cortes na Previdência.

Na noite de 14 de junho, as praças e avenidas do país voltarão a ser palco desta luta, no que pode se tornar a maior Greve Geral da história do Brasil.

Nosso país é alvo de uma ofensiva em larga escala, que mistura violência e desinformação, gerando um governo que não escuta nem respeita seu povo. Com soldados que continuam recebendo ordem para perseguir, espancar e disparar em direção aos cidadãos que protestam contra o governo – e até mesmo contra aqueles que nada fizeram. Sendo assim, como e por quê não fazer nada?

 

Governos autoritários, protestos e censuras

A economista Rosa Luxemburgo foi uma das principais líderes contra o governo da Rússia, bem antes dos bolcheviques tomarem o poder. Rosa se dizia comunista, o governo da China também. Contudo, dois anos antes da Greve Geral de 1917, Luxemburgo já alertava que mesmo seus aliados poderiam ser perigosos se instalassem uma regime autoritário no país. Infelizmente, em algum momento, assim foi.

O Brasil de 1917 também viveu uma Greve Geral, como a que se aproxima hoje. Mas diferente da Rússia, nosso saldo não foi a queda do governo, e sim o reconhecimento do movimento trabalhista como instância legítima, obrigando os patrões a negociar com os funcionários. Aqueles grevistas, também inspirados em líderes como Luxemburgo, traçaram sua própria história. Conquistaram 50% de aumento, e a criação posterior do 1º Departamento Nacional para a regulamentação da justiça do trabalho.

Assim como Rosa, dita comunista, defendia a liberdade contra o autoritarismo, inúmeros militares na história do Brasil também defenderam os direitos dos trabalhadores contra a violência do estado – a exemplo de João Cândido, “o Almirante Negro“, e tantos outros. “Militares” e “comunistas” como esses não se parecem em nada com aqueles que estão no governo da China nem do Brasil. E a Greve Geral que se aproxima também não é parecida com a polarização política que há anos se instaurou no país.

Assim como Rosa, milhares de brasileiros que no passado foram aliados desse governo, hoje o abandonaram e lutam contra esse autoritarismo. Não é  um embate entre esquerda e a direita ou entre o governo atual e o passado. É uma luta pela urgência do respeito e pelo direito a um futuro para milhões de brasileiros.

A verdade é que a China e o Brasil de hoje, assim como os de antigamente, carregam mais semelhanças entre si pelos traços de censura e repressão do governo contra seu próprio povo, do que por qualquer outra característica política, ideológica ou econômica. Talvez essa seja a maior lição que podemos tomar neste dia:

 

É preciso guardar a memória para comunicar a verdade sem edições. É preciso avançar, aprender com os erros, e traçar a nossa própria história. Reconhecendo o valor da liberdade, do respeito, e da luta pelos nossos direitos.

 

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